O conceito "Sociedade da Informação" é útil para a sociedade civil?
por Graciela Baroni Selaimen <graciela@rits.org.br>
O termo "Sociedade da Informação" (ou o termo relacionado "Sociedade do Conhecimento") tem utilidade para a sociedade civil? Ele descreve adequadamente as mudanças nos processos e estruturas sociais que estão acontecendo atualmente em âmbito global? Há de fato uma nova forma de sociedade emergindo? E, se há, para quem se constrói esta sociedade, e como ela pode ser direcionada para fomentar os direitos humanos e atender necessidades humanas urgentes?
A Sociedade da Informação não é ideologicamente neutra
As respostas para estas questões não são óbvias, de modo algum, pois elas carregam consigo uma forte carga ideológica. No momento em que o
- boom*industrial do pós-guerra se revertia em inflação, estagnação e
recessão, o livro de Daniel Bell "A Chegada da Sociedade Pós-Industrial" (1973) abriu a cena para o desenvolvimento da idéia de uma "sociedade da informação". Bell argumentava que o transtorno econômico então vivido pelas economias industriais do Norte anunciava uma mudança - de economias fundamentadas na produção de bens tangíveis para economias baseadas na prestação de serviços. Computação, pesquisa e desenvolvimento científico, educação, serviços de saúde - as atividades baseadas no conhecimento viriam se tornar a espinha dorsal de uma economia pós-industrial e de uma sociedade baseada na informação.
Ao longo dos anos 80 e no início da década de 90 a transferência em larga escala da produção indústrial para o Sul - onde a mão-de-obra era barata ? tomou mais força e uma enxurrada de estudos e relatórios patrocinados por governos e grupos de acadêmicos e especialistas seguiram a linha proposta por Bell e enquadraram esta reestruturação econômica como o nascimento de uma "sociedade da informação". Alimentadas pelas políticas econômicas neo-liberais, privatizações, comércio livre, desregulamentações e ajustes estruturais se tornaram as palavras-de-ordem de um plano emergente que era, essencialmente, um meio para reanimar um sistema capitalista enfêrmo.
A tecnologia da informação desempenhou um papel central neste processo. Na arena global, a tecnologia facilitou o movimento rápido tanto de bens como de capital, ligando os novos centros manufatureiros do Sul aos mercados do Norte. No Hemisfério Norte, a desregulamentação dos mercados de telecomunicações era encarada como um fator fortalecedor para investimentos e pesquisa e desenvolvimento na área da tecnologia da informação, provendo, portanto, a infra-estrutura técnica para a produção e a comercialização de novos produtos na área da informação.
Seguindo o exemplo de outros, quando os países da União Européia deram início a um grande impulso para "re-regular" e privatizar o setor de telecomunicações em meados dos anos 90, eles utilizaram o termo "sociedade da informação" especificamente para enfatizar que a nova sociedade pela qual eles estavam se empenhando teria um foco importante nas questões sociais. A reestruturação não se dava simplesmente no âmbito da infra-estrutura (que, no final das contas, seria de propriedade do setor privado e controlada por ele), mas também no âmbito do desenvolvimento e dos investimentos sociais, assegurando que seus benefícios chegariam às pessoas.
Infelizmente, as atividades e os orçamentos direcionados ao alcance de objetivos sociais foram minúsculos, comparados às enormes mudanças trazidas pela re-regulação e privatização de infra-estrutura. Em 1995, o G7 ? grupo de países industrializados ? apresentou sua própria versão da Sociedade da Informação Global, mais uma vez oferecendo uns poucos e pequenos programas-piloto para promover a universalização dos serviços, ao mesmo tempo em que vigorosamente davam seguimento a políticas liberalizadoras que obtiveram grande sucesso em desnacionalizar a indústria de telecomunicações e que estão tendo continuidade na área dos meios de comunicação, de uma maneira mais geral.
Neste sentido, a "Sociedade da Informação" é uma invenção das necessidades capitalistas da globalização e dos governos que financiam estas necessidades. Ao mesmo tempo em que houve, como resultado deste processo, um crescimento do acesso a serviços de informação em muitos países do Sul, este crescimento está restrito a áreas urbanas e a regiões que representam mercados mais lucrativos ? e a maioria acabou por encontrar-se no lado menos privilegiado de uma crescente "Brecha Digital" ? um fenômeno multi-facetado no qual os indivíduos do sexo masculino, com educação de nível superior, bem remunerados, dentro do padrão Ocidental, estão em vantagem onde quer que seja ? no Norte ou no Sul.
A Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, o Dot Force e até mesmo a ICT Task Force das Nações Unidas são vistos por muitos como meramente uma nova esfera neste desequilibrado desenvolvimento de políticas, atraindo clientes para as novas tendências de imposição de um modelo neo-liberal de comunicação em todos os cantos do planeta. Enquanto estão se focando (com poucos resultados) na mais recente onda de desigualdade ? A Brecha Digital -, estas instâncias não são capazes de lidar com, ou articular, questões mais profundas sobre as imensas transformações estruturais que vislumbramos no campo da informação e da comunicação.
Resgatando o conceito: de volta às origens
Esta noção da Sociedade da Informação, guiada pelos interesses de corporações transnacionais, tratando com superficialidade as verdadeiras necessidades humanas e cada vez mais crescente desigualdade, não é endossada por muitos, da sociedade civil. Portanto, um passo essencial é reabilitar o termo Sociedade da Informação, para afirmar que não há um único modelo de sociedade da informação, mas muitas "sociedades da informação" possíveis. O passo seguinte deve ser determinar que tipo de sociedade da informação irá promover melhor o desenvolvimento e os direitos humanos, e se a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da informação oferece uma oportunidade para nos reunirmos para esboçar e implementar este conceito.
Um problema com o uso corrente do termo Sociedade da Informação é que ele freqüentemente apresenta as tecnologias de informação e comunicação (e o acesso a elas) como fins em si mesmas, ao invés de apresentá-las como ferramentas de apoio. Manter o foco nesta última abordagem poderia levantar em pouco tempo questões mais fundamentais do que as que estiveram no centro dos primeiros debates sobre a sociedade da informação, ou sobre aquela que era chamada a sociedade pós-industrial. Nos anos 70, os formuladores de políticas perceberam que a informação estava desempenhando um papel cada vez mais importante não apenas em setores econômicos (o aumento do número de trabalhadores na área de informação, de serviços, de produtos inteligentes etc.) mas também na vida social, cultural e política. A geração, disseminação e uso efetivo da informação estavam se tornando fatores decisivos na dinâmica da sociedade. Esta tendência ganhou ímpeto nas décadas seguintes, e deu lugar à idéia da "sociedade do conhecimento". Intimamente relacionada à "Sociedade da Informação", esta idéia estabelece uma ligação entre informação e conhecimento, mas dentro de um ambiente orientado para a competição de mercado. (A "Sociedade do Conhecimento", entretanto, traz sua própria bagagem ideológica, sobre a qual não vamos discutir neste texto.)
Questões-chave para a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação
Se a sociedade civil se propuser a abraçar e resgatar uma outra noção de sociedade da informação, deve se voltar a estes fundamentos propondo as questões corretas:
- Quem gera e possui a informação e o conhecimento? Eles são utilizados para o benefício privado de uns poucos ou para o benefício público de muitos? - Como o conhecimento é disseminado e distribuído? Quem concentra e distribui o conhecimento? - O que inibe e o que facilita a utilização do conhecimento pelas pessoas, para que atinjam seus objetivos? Quem está melhor e pior posicionado para tirar vantagem deste conhecimento?
Muitas outras questões subsidiam o balizamento destes temas: Será que as
tendências globais na área de direitos autorais foram longe demais, ao
apoiar os proprietários de empresas, às custas da criatividade e do domínio
público? A concentração da propriedade dos meios de comunicação ameaça a
participação política e a diversidade cultural? A liberalização no campo das
telecomunicações irá inibir as políticas de universalização do acesso,
especialmente para os usuários mais pobres e os que estão em áreas rurais?
Que impacto terá a progressiva privatização das freqüências de rádio neste
recurso público? Quais são as implicações a longo prazo da comercialização
dos ambientes de conhecimento, através da propaganda e da promoção de uma
moral consumista, especialmente nos países pobres? Será que o atual desgaste
da privacidade e o fortalecimento da vigilância são necessários? Que ações
devem ser tomadas para tratar dos motivos da brecha digital? Como jovens e
mulheres podem formatar e participar das políticas relacionadas à sociedade
da informação? As tendências atuais na governança global podem colocar os
direitos humanos no cerne da agenda da sociedade da informação? A sociedade
da informação vai trazer desenvolvimento sustentável para todos? A Cúpula
Mundial sobre a Sociedade da Informação poderia ser um fórum oportuno onde
estas questões vitais fossem levantadas.
O conceito "Sociedade da Informação" é útil para a sociedade civil? Potencialmente, sim ? se este conceito for constituído para abarcar a plena dinâmica da informação e do conhecimento na sociedade, e for focado na promoção dos direitos humanos e do desenvolvimento social, cultural e econômico. Mas se for limitado à discussão da "Brecha Digital" e se confundir meios ? tecnologias ? com fins ? desenvolvimento humano ? então ele não é capaz de transcender suas raízes ideológicas estreitas.
- Outras leituras:*
- Christopher May, The Information Society: A Sceptical View (Polity, 2002);
- Subhash Bhatnagar & Robert Schware (eds.), Information and communication technology in development. Cases from India, Sage, New Delhi, 2000. - Gert Nulens, Nancy Hafkin, Leo Van Audenhove & Bart Cammaerts (eds.), The digital divide in developing countries: Towards an information society in Africa, VUB Press, Brussels, 2001. - Jan Servaes (ed.), Walking on the other side of the information highway. Communication, culture and development in the 21st century, Southbound, Penang, 2000. - Robin Mansell and Uta Wehn (eds.), Knowledge societies. Information technology for sustainable development, Oxford UP, Oxford, 1998. - Frank Webster, Theories of the information society, Routledge, London, 1995.
Este é um artigo da *Campanha CRIS*. Estes textos têm o objetivo de iniciar a discussão em torno de temas relacionados à Cúpula Mundial sobre a Sociedade da informação. *Nós necessitamos de seus comentários* para corrigir, refinar ou complementar estas idéias. Visite nosso site no endereço www.crisinfo.org ou envie seus comentários para issues@crisinfo.org. Sinta-se livre para reproduzir este material, citando a fonte.
Tradução de Graciela Selaimen <graciela@rits.org.br>