Comemorações EZLN

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Exército Zapatista de Libertação Nacional. México. Ao povo do México e aos povos do mundo: À imprensa nacional e internacional:

Irmãos e irmãs:

Comunicamos a vocês que, no próximo 17 de novembro de 2003, o EZLN completa 20 anos de vida.

Em função disso, o EZLN se propõe a celebrar a data em companhia dos povos indígenas em resistência, internamente e a portas fechadas. Desta forma, nós zapatistas poderemos nos dedicar exclusivamente à celebração dos nossos aniversários.

Poe esta razão, os caracóis de Oventik, La Realidad, La Garrucha, Roberto Barrios e Morelia serão fechados à imprensa nacional e internacional, e à sociedade civil nacional e internacional, do dia 15 de novembro ao dia 20 do mesmo mês. A mesma medida será aplicada nos povoados majoritariamente zapatistas. Durante estes dias, o acesso não será permitido. Sem exceção.

Em seu lugar, o EZLN convida todos e todas aos atos que a revista Rebeldia e várias organizações sociais e coletivas do México e do mundo estão organizando em todo o país e nos cinco continentes.

A estes atos, o CCRI-CG do EZLN enviará a sua palavra, mas nenhum membro da direção zapatista se apresentará pessoalmente nos eventos a serem realizados fora das montanhas do sudeste mexicano.

Democracia! Liberdade! Justiça!

Das montanhas do Sudeste Mexicano. Pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena – Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional Subcomandante Insurgente Marcos. México, novembro de 2003.

Exército Zapatista de Libertação Nacional. México.

10 de novembro de 2003.

Bons dias, boas tardes, boas noites. Fala-lhes o SupMarcos. Sejam bem-vindos e bem-vindas todas e todos vocês. Estamos aqui para dar início à celebração de uma história e para apresentar um livro que conta parte desta história. Ainda que possa se pensar o contrário, a história a celebrar e a contar não é sobre os 20 e 10 anos do EZLN. Quero dizer, não só. Muitas pessoas se sentirão partícipes desses 20 e desses 10 anos. E não me refiro só aos milhares de povoados indígenas rebeldes, mas também a milhares de homens, mulheres, crianças e anciãos do México e do mundo. A história que hoje começamos a celebrar é também a historia de todos eles e elas.

As palavras que agora escrevo e digo são dirigidas a todas estas pessoas que, sem integrar as fileiras do EZLN, partilham, vivem e lutam conosco uma idéia: a construção de um mundo onde caibam todos os mundos. Isso também poderia ser anunciado dizendo que queremos um aniversário onde caibam todos os aniversários. Assim, comecemos a festa como se começavam as festas de aniversário nas montanhas do sudeste mexicano há 20 anos, ou seja, contando histórias.

Segundo o nosso calendário, a história do EZLN anterior ao início da guerra, teve 7 etapas.

A primeira delas é quando foram selecionados aqueles que integrariam o EZLN. Isso foi por volta de 1982. Organizavam-se práticas de um ou dois meses na selva, e nelas se avaliava o desempenho dos participantes para ver quem podia “agüentar o tranco”. A segunda etapa é a que chamamos de “implantação”, ou seja, a fundação propriamente dita do EZLN.

Hoje é o 10 de novembro do ano de 2003.

Peço que nos permitam imaginar que num dia como hoje, mas há 20 anos, em 1983, um grupo de pessoas preparava em alguma casa de segurança os apetrechos que teria de levar às montanhas do sudeste mexicano. Talvez, há 20 anos, o dia passava checando o equipamento, juntando informes sobre os caminhos, as rotas alternativas, os tempos; detalhando itinerários, ordens, preparativos. Há 20 anos, talvez há esta hora, estariam subindo num veículo e iniciariam a viagem para Chiapas. Se pudéssemos estar lá, talvez perguntaríamos a estas pessoas o que é que iam fazer. E, com certeza, teriam nos respondido: “fundar o Exército Zapatista de Libertação Nacional”. Haviam esperado 15 anos para dizer estas palavras.

Suponhamos então que iniciam a sua viagem no dia 10 de novembro de 1983. Uns dias depois chegam no final de uma estrada de terra, tiram suas coisas, dispensam o motorista com um “até logo” e, depois de acomodar suas mochilas, iniciam a subida de uma das serras que atravessam, inclinadas a ocidente, a Selva Lacandona. Depois de caminhar muitas horas, com uns 25 quilos de peso nas costas, montam seu primeiro acampamento, já serra adentro. Sim, é possível que naquele dia fizesse frio ou até chovesse. Hoje, há 20 anos, é noite avançada debaixo das grandes árvores e, com a ajuda de uma lanterna, estes homens e mulheres colocam um telhado de plástico usando uma corda como travessa, amarram suas redes, procuram lenha seca e, queimando uma sacola de plástico, acendem sua fogueira. À sua luz, o comando escreve em seu diário de campanha algo como: “17 de novembro de 1983. Tantos metros sobre o nível do mar. Chove. Montamos o acampamento. Sem novidades”. Na parte superior esquerda da folha na qual se escreve, aparece o nome que colocaram a esta primeira estação de uma viagem que todos sabem que vai ser muito longa. Não houve nenhuma cerimônia especial, mas, neste dia e nesta hora, é fundado o Exército Zapatista de Libertação Nacional. Com certeza, alguém propôs então um nome para este acampamento. Não o conhecemos. O que sabemos é que este grupo era formado por 6 pessoas. Os primeiros 6 insurgentes, cinco homens e uma mulher. Desses 6, três eram mestiços e três indígenas. A proporção de 50% de mestiços e 50% de indígenas não volta a se repetir nos 20 anos do EZLN, tampouco a proporção das mulheres (menos de 20% nestes primeiros dias). Atualmente, 20 anos depois daquele 17 de novembro, a porcentagem deve estar na casa dos 98,9% de indígenas e 1% de mestiços. A porcentagem de mulheres está em torno dos 45%.

Como se chamou este primeiro acampamento do EZLN? A este respeito aqueles primeiros 6 insurgentes não entram num acordo. Conforme aprendi depois, os nomes dos acampamentos eram escolhidos sem nenhuma lógica, e, de forma natural e sem mistificações, se evitavam os nomes apocalípticos ou proféticos. Nenhum deles se chamou, por exemplo, “Primeiro de janeiro de 1994”.

Conforme contam aqueles primeiros 6, um dia mandaram um insurgente explorar um lugar para ver se havia condições para acampar. O insurgente voltou dizendo que o lugar era “um sonho”. Os companheiros foram até lá e, ao chegar, se depararam com um pântano. Disseram então ao companheiro “Este não é um sonho, é um pesadelo”. Por isso, o acampamento de chamou então “O Pesadelo”. Deve ter sido nos primeiros meses de 1984. O nome daquele insurgente era Pedro. Depois seria subtenente, tenente, segundo capitão, primeiro capitão e subcomandante. Com este grau e sendo Chefe do Estado Maior Zapatista, dez anos depois, caiu em combate em primeiro de janeiro de 1994, ao tomar Las Margaritas, Chiapas, México.

A terceira etapa, sempre antes do levante, é quando nos dedicamos às tarefas de sobrevivência, ou seja, a caçar, a pescar, a coletar frutos e plantas silvestres. Naquele tempo nos dedicamos ao conhecimento do terreno, ou seja, orientação, caminhos, topografia. E nesta época estudamos estratégia e táticas militares nos manuais do exército norte-americano e do federal mexicano, o uso e o cuidado com as várias armas de fogo, além das chamadas “artes marciais”. Estudávamos também a história do México e, obviamente, tínhamos uma vida cultural muito intensa.

Eu chego na Selva Lacandona na terceira etapa, em 1984. Por volta de agosto-setembro daquele ano, uns 9 meses depois da chegada do primeiro grupo. A minha chegada foi com outros dois companheiros: uma companheira indígena chol e um companheiro indígena tzotzil. Se não estiver errado, na minha chegada no EZLN tinha 7 elementos de base e outros dois que “subiam” e “desciam” à cidade com mensagens e pelo abastecimento. A passagem pelos povoados era feita de noite e disfarçados de engenheiros.

Os acampamentos daquela época eram relativamente simples: tinham uma área de intendência ou a cozinha, os dormitórios, a área de exercícios, a posta, a área 25 e 50, e os campos de fogo para a defesa. Talvez, alguém dos que me ouvem se pergunta que diabo é a “área 25 e 50”. Bom, acontece que para fazer as necessidades que chamam de “primárias”, era necessário afastar-se a certa distância do acampamento. Para ir urinar tinha que se retirar 25 metros; para defecar eram 50 metros, além de fazer um buraco com o facão e, em seguida, cobrir o “produto”. Claro que estas disposições eram de quando nós éramos, como se diz, um punhado de homens e mulheres, ou seja, não passávamos de 10. Tempos depois, construíamos latrinas em áreas mais afastadas, mas os termos “25” e “50” ficaram.

Havia um acampamento que se chamava “O Fogão”, porque foi aí a primeira vez que construímos um. Antes disso, o fogo era feito no chão e as panelas (duas: uma para o feijão e outra para o animal que caçávamos ou pescávamos) eram suspensas numa travessa amarrada com cipós. Mas logo já éramos mais e então entramos na “era do fogão”. Naquele momento, a planilha do EZLN era de 12 combatentes.

Tempos depois, num acampamento chamado “Recrutas” (porque aí é onde eram treinados os novos combatentes), entramos na “era da roda”. É que trabalhamos com o facão uma roda de madeira e fizemos um carrinho para levar pedras para as trincheiras. Devem ter sido os tempos, porque a roda era bastante quadrada e acabávamos carregando as pedras nas costas.

Outro acampamento se chamou “Baby Doc”, em honra de quem assolou, com a aprovação dos Estados Unidos, as terras haitianas. Acontece que, com uma coluna de recrutas, estávamos nos movendo para acampar perto de um povoado. No caminho, topamos com um grupo de javalis, ou seja, uma beleza de porcos selvagens. A coluna guerrilheira se posicionou com disciplina e habilidade, ou seja, aquele que ia à vanguarda gritou “porcos” e, tendo o pânico como motor e combustível, subiu numa árvore com uma habilidade que não voltamos a ver. Outros correram com valentia, mas para o lado oposto aquele onde estava o inimigo, ou seja, os javalis. Alguns fizeram pontaria e deram conta de dois porcos selvagens. Na retirada inimiga, ou seja, quando os porcos foram embora, ficou abandonado um porquinho cujo tamanho era inferior ao de um gato. Adotamos-no e lhe colocamos o nome de “Baby Doc” porque por aqueles tempos Papá Doc Duvalier morria e deixava a carnificina em herança ao seu rebento. Acampamos aí para ajeitar as peças e comer. O porquinho se apegou a nós, creio que pelo cheiro.

Outro acampamento daqueles anos se chamou “Da Juventude”, porque aí se formou o primeiro grupo de jovens insurgentes, que se chamou “Jovens Rebeldes do Sul”. Uma vez por semana, os jovens insurgentes se reuniam para cantar, dançar, ler, praticar esportes e concursos.

Em 17 de novembro de 1984, há 19 anos, foi a primeira vez que celebramos o aniversário do EZLN. Éramos 9. Creio que foi num acampamento que se chamou “Margaret Thatcher” porque havíamos agarrado uma macaca que, juro, era o clone da “dama de ferro”. Um ano depois, em 1985, o comemoramos num acampamento chamado “watapil”, porque este é o nome da planta com cujas folhas fizemos uma barraca para os alimentos.

Eu era segundo capitão, estávamos na chamada “Serra do Almendro” e a coluna mãe havia ficado em outra serra. Tinha 3 insurgentes sob o meu comando. Se as matemáticas não falham, éramos 4 naquele acampamento. Comemoramos com torradas, café, farinha de milho com açúcar e um animal que matamos pela manhã. Houve canções e poemas. Um cantava ou declamava e os outros três aplaudiam com o aborrecimento digno da melhor causa. Na minha vez, com um discurso solene, disse-lhes, sem outros argumentos que os mosquitos e a solidão que nos envolvia, que um dia seríamos milhares e que a nossa palavra daria a volta ao mundo. Os outros três concordaram com o fato de que provavelmente a torrada estava estragada, que, com certeza, me tinha feito mal e que por isso delirava. Lembro que naquela noite choveu. Na que chamamos a quarta etapa, foram feitos os primeiros contatos com os povoados da região. Antes se falava com uma pessoa e esta pessoa falava com a sua família. Da família se passava ao povoado, do povoado à região. Assim, pouco a pouco, nossa presença se tornou um segredo coletivo e uma conspiração em massa. Nesta etapa, que corre paralela no tempo à terceira, o EZLN já não era o que havíamos pensado quando chegamos. Nesta altura, já havíamos sido derrotados pelas comunidades indígenas e, produto desta derrota, o EZLN começou a crescer geometricamente e a tornar-se “muito diferente”, ou seja, a roda continuou sendo batida até que, enfim, ficou redonda e pôde fazer o que uma roda deve fazer, ou seja, rodar. A quinta etapa é a do crescimento explosivo do EZLN. Em função das condições políticas e sociais, crescemos para além da Selva Lacandona e chegamos a Los Altos e ao norte de Chiapas. A sexta é a votação da guerra e os preparativos, incluída a chamada “Batalha de Corralchén”, em maio de 1993, quando tivemos os primeiros combates com o exército federal. Há dois anos, na Marcha pela Dignidade Indígena, num dos lugares que atravessamos, vi uma espécie de garrafa gorda, como uma jarra com a boca pequena. Era de barro, creio, e era forrada de pedacinhos de espelho. Ao refletir a luz, cada espelhinho da jarra-garrafa devolvia uma imagem particular. Tudo ao seu redor tinha nela um reflexo singular e, ao mesmo tempo, o conjunto se assemelhava a um arco-íris de imagens. Era como se muitas pequenas histórias se unissem para, sem deixar de serem diferentes, formar uma história maior. Pensei que, na melhor das hipóteses, a história do EZLN poderia ser contada, olhada e analisada como uma jarra-garrafa.

Hoje, 10 de novembro de 2003, vinte anos depois daquela viagem iniciada pelos fundadores de nossa organização, começa uma campanha, por iniciativa da Revista Rebeldia, para celebrar o vigésimo aniversário do EZLN e o décimo aniversário do início da guerra contra o esquecimento, e se apresenta este livro chamado “EZLN: 20 e 10, o fogo e a palavra”, de Gloria Muñoz Ramírez. Este livro poderia ser resumido numa imagem, não me viria nada melhor do que a jarra-garrafa forrada de pedacinhos de espelho. Numa das partes do livro, Gloria reúne os testemunhos de alguns companheiros bases de apoio, responsáveis, comitês e insurgentes que falam do seu pedacinho de espelho nas cinco últimas etapas anteriores ao levante, ou seja, as etapas 3, 4, 5, 6 e 7. É a primeira vez que companheiros que estão na luta zapatista há mais de 19 anos abrem seu coração e sua memória sobre aqueles anos de silêncio. Assim, Gloria consegue transformar estes pedacinhos de espelho em pedacinhos de cristal que permitem aproximar-se um pouco aos primeiros 10 anos do EZLN. Pode-se adivinhar assim outra história, muito diferente da que construíram os governos de Carlos Salinas de Gortari e Ernesto Zedillo, com mentiras, com informes policiais adulterados de acordo com as conveniências e com a cumplicidade de intelectuais que disfarçaram, sob o manto de supostas pesquisas “sérias”, o cheque e o carinho que receberam do poder para pagar a dívida de sua “objetividade científica”.

Com os pedacinhos de espelho e cristal que Gloria conseguiu, o leitor se dará conta de que está apenas se aproximando de algumas partes de um gigantesco quebra-cabeça. Um quebra-cabeça cuja peça-chave está no primeiro dia do ano de 1994, quando, através do tratado de livre comércio, o México entrava no primeiro mundo.

Antes deste primeiro de janeiro, a véspera, foi a sétima etapa do EZLN.

Lembro que, na noite de 30 de dezembro de 1993, estava na rodovia Ocosingo-San Cristóbal de las Casas. Neste dia, havia estado nas posições que mantínhamos nos arredores de Ocosingo. Por rádio havia checado a situação de nossas tropas que estavam se concentrando em vários pontos à margem da rodovia, ao longo do vale de Patiwitz, Monte Líbano e Las Tazas. Estas tropas pertenciam ao terceiro regimento de infantaria. Eram cerca de 1500 combatentes. A missão do terceiro regimento era tomar Ocosingo. Mas antes disso deviam, “ao passar” tomar as fazendas da região e apropriar-se do armamento dos jagunços dos fazendeiros. Pelo que me relataram, um helicóptero do exército federal havia dado voltas sobre o povoado de San Miguel, alertado, com certeza, pela multidão de veículos que estavam se concentrando neste povoado. Desde a madrugada do dia 29, todo veículo que entrava nos vales não saía, todos foram “emprestados” para mobilizar as tropas do terceiro regimento. Em sua totalidade, o terceiro regimento era integrado por indígenas tzeltales.

Ao passar, eu havia checado as posições do batalhão número 8 (que integrava o quinto regimento), que se encarregaria de tomar a cabeceira municipal de Altamirano num primeiro movimento. Depois, durante a sua marcha, tomaria Chanal, Oxchuc e Huixtán, para, em seguida, participar do ataque ao quartel de Rancho Nuevo nas redondezas de San Cristóbal. O oitavo era um batalhão reforçado. Para tomar Altamirano contaria com cerca de 600 combatentes dos quais uma parte ficaria depois da tomada. Em seu avanço incorporaria outros companheiros, para chegar a Rancho Nuevo com cerca de 500 soldados. O oitavo batalhão era integrado, em sua grande maioria, por tzeltales. Ainda na rodovia, fiz uma parada numa região mais elevada, entrei em contato via rádio com o batalhão 24 (também parte do quinto regimento), cuja missão era tomar a cabeceira municipal de San Cristóbal de las Casas e fazer o ataque conjunto (com o batalhão 8) ao quartel militar de Rancho Nuevo. Também o vigésimo quarto era um batalhão reforçado. Em número, sua tropa chegava a quase 1000 combatentes, todos da região de Los Altos e indígenas tzotziles. Ao chegar em San Cristóbal, contornei a cidade e me dirigi à posição em que estaria o Quartel Geral do Comando do EZLN. Daí, me comuniquei via rádio com o comando do primeiro regimento, o Subcomandante Insurgente Pedro, chefe do Estado Maior Zapatista e segundo comandante do EZLN. Sua missão era tomar a cabeceira de Las Margaritas e avançar para atacar o quartel militar em Comitán. Forte em 1200 combatentes, o primeiro regimento era integrado em sua maioria por tojolabales. Além disso, na chamada “segunda reserva estratégica” ficava um batalhão, integrado por indígenas choles, e nas profundezas de nossas bases de saída, com 3 batalhões dispostos nas áreas tzeltal, tojolabal, tzotzil e chol, se encontrava a chamada “primeira reserva estratégica”. Sim, o EZLN sai a público com mais de 4500 combatentes na primeira linha de fogo, a assim chamada vigésima primeira Divisão de Infantaria Zapatista, e uns 2000 combatentes permaneciam na reserva. Na madrugada de 31 de dezembro de 1993, confirmei a ordem de ataque, a data e a hora. Resumindo: o EZLN atacaria simultaneamente 4 cabeceiras municipais e outras 3 “de passagem”, reduziria as tropas, policiais e militares nestas praças e, em seguida, marcharia para atacar dois grandes quartéis do exército federal. A data: 31 de dezembro de 1993. A hora: às 24.00 hs.

A manhã do dia 23 transcorreu no desalojamento das posições urbanas que se mantinham em alguns lugares. Por volta das 14.00 hs, os vários regimentos confirmaram ao Comando Geral que estavam prontos. Às 17.00 hs, começou a contagem regressiva: “Menos 7” se chamou esta hora. A partir daí foi cortada toda a comunicação com os regimentos. O próximo contato via rádio estava programado para às “Mais 7”, às 07.00 hs do dia 1º de janeiro de 1994 com os que estariam vivos.

O que aconteceu depois, se não o sabem, podem encontrá-lo neste livro; e se já o conhecem, podem relembrá-lo. Nele a jarra-garrafa se transforma num gigantesco tapete, por sorte já esboçado em suas linhas gerais por Gloria, e cheio destes pedacinhos de espelho e de cristal que lhe pertencem. Justamente pensando nisso, escrevi na Introdução quanto segue: Uma mulher, jornalista de profissão, acabou, não sem dificuldades, por pular o complexo e espesso muro do ceticismo zapatista e ficou para viver nas comunidades indígenas rebeldes. Desde então, partilhou com os companheiros o sonho e o desvelo, as alegrias e as tristezas, os alimentos e suas ausências, as perseguições e os descansos, as mortes e as vidas. Pouco a pouco, os companheiros e companheiras foram aceitando-a e tornando-a parte de sua vida quotidiana. Não vou contar a sua história. Entre outras coisas, porque ela preferiu contar a história de um movimento, o zapatista, não a própria. O nome desta pessoa é Gloria Muñoz Ramírez. Durante o período que vai de 1994 a 1996, trabalhou para a revista mexicana “Punto”, para a agência de notícias alemã DPA, para o jornal norte-americano “La Opinión” e para o jornal mexicano “La Jornada”. Em 1995, na manhã de 9 de fevereiro e junto a Hermann Bellinghausen, realizou para o La Jornada a reportagem que pôde ter, deixou seu trabalho, sua família, seus amigos (além de coisas que só ela sabe) e veio viver nas comunidades zapatistas. Durante estes 7 anos, não publicou nada, mas continuou escrevendo e seu faro jornalístico não a abandonou. Claro que já não era jornalista, ou já não era só jornalista. Gloria foi aprendendo a ter outro olhar, o que está longe do deslumbramento produzido pelos refletores, do barulho dos pavilhões, do atropelado correr atrás da notícia, da luta pela exclusiva. O olhar que se aprende nas montanhas do sudeste mexicano. Com paciência digna de uma bordadeira, foi recolhendo fragmentos da realidade de dentro e de fora do zapatismo nestes, agora, 10 anos de vida pública do EZLN. Nós não sabíamos. Foi quando se anunciou o nascimento dos Caracóis e das Juntas de Bom Governo que recebemos uma carta dela, apresentando este bordado de palavras, datas e memórias, e colocando-o à disposição do EZLN. Lemos o livro, bom, naquele momento não era um livro, mas sim um extenso e multicolorido tapete cuja vista ajudava bastante a esboçar a complexa silhueta do zapatismo de 1994 a 2003, os 10 anos de vida pública do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Enfim, gostamos. Não conhecemos nenhum material publicado com tantos pormenores e tão completo. Respondemos a Gloria como nós costumamos responder, ou seja, com um “Mmhh, é?”. Gloria voltou a escrever e falou do duplo aniversário (20 anos de EZLN e 10 anos do início da guerra contra o esquecimento), da etapa que iniciava com a criação dos Caracóis e das Juntas de Bom Governo, alguma coisa de um plano de festejos da revista “Rebeldia”, e não lembro quantas outras coisas mais. Entre tantas outras coisas, algo estava claro: Gloria propunha publicar o livro para que os jovens de agora conhecessem mais o zapatismo. “Os jovens de agora?”, pensei e perguntei ao Major Moisés, “Quer dizer que nós não somos os jovens de agora?”. “Claro que somos”, me respondeu o Major Moisés sem deixar de selar o cavalo, enquanto eu continuava azeitando a minha cadeira de rodas e amaldiçoava que a farmácia do acampamento não tivesse Viagra. Onde é que eu estava? Ah sim!, no livro que ainda não era livro. Gloria não esperou que disséssemos que sim, ou que, no mais puro estilo zapatista, não respondêssemos. Ao contrário, ao tapete, ou seja, ao esboço do livro que não era livro, Gloria anexava a solicitação de completar o material com entrevistas. Fui ter com o comitê e, sobre o solo lamacento de setembro, estendi o tapete (ou seja, o esboço do livro). Viram-se. Quero dizer, os companheiros viram a si mesmos. Ou seja, além de ser tapete era um espelho. Não disseram nada, mas eu entendi que havia mais gente, muita mais, que talvez também veria e se veria. Respondemos a Gloria que fosse “adiante”. Isso foi em agosto ou setembro deste ano (ou seja, 2003), não lembro bem, mas foi depois das festas dos Caracóis. Lembro-me, sim, que chovia muito, que eu ia subindo uma encosta repetindo a cada passo a maldição de Sísifo, e que Monarca estava empenhado na Rádio Insurgente, “A voz dos sem voz”, passávamos uma remixagem de “la del moño colorado”. Quando voltei a dizer a Monarca que teria que passar por cima de mim para fazer isso, escorreguei pela enésima vez, mas agora fui cair em cima de um montão de pedras afiadas e cortei a perna. Enquanto fazia um balanço dos danos, Monarca, passou por cima de mim como se nada tivesse acontecido. Naquela tarde transmitimos na Rádio Insurgente, “A voz dos sem voz”, uma versão de “la del moño colorado” que, a julgar das chamadas via rádio que recebemos, foi um tremendo sucesso. Eu suspirei, que mais podia fazer. O livro que o leitor ou leitora tem agora em suas mãos é este tapete-espelho só que disfarçado de livro. Não dá pra colocar na parede ou pendurar no quarto, mas você pode se aproximar dele para procurar-nos e procurar-se. Tenho certeza de que nos encontrará e se encontrará. O livro EZLN: 20 e 10, o Fogo e a Palavra, escrito por Glória Muñoz Ramírez foi editado pela união de dois esforços, o da revista “Rebeldia” e do jornal mexicano “La Jornada”, dirigido por Carmen Lira. Mmh. Outra mulher. O desenho editorial é de Efrain Herrera e as ilustrações são de Antonio Ramírez e Domi. Mmh. Mais mulheres. As fotos são de Adrian Meland, Ángeles Torrejón, Antonio Turok, Araceli Herrera, Arturo Fuentes, Carlos Cisneros, Carlos Ramos Mamahua, Eduardo Verdugo, Eniac Martinez, Francisco Olvera, Frida Hartz, Georges Bártoli, Heriberto Rodríguez, Jesús Ramírez, José Carlos González, José Nuñez, Marco Antonio Cruz, Patrícia Aridjis, Pedro Valtierra, Simona Granati, Victor Mendiola e Yuriria Pantoja. A edição fotográfica ficou a cargo de Yuriria Pantoja e o cuidado da edição foi realizado por Priscila Pacheco. Mmh. De novo, mais mulheres. Se o leitor vê que as fêmeas são maioria, faça como eu: coce a cabeça e diga “de jeito nenhum”. Até onde tenho entendido (faço este escrito à distância), o livro tem três partes. Numa aparecem entrevistas com companheiros bases de apoio, comitês e soldados insurgentes. Nelas, os companheiros e companheiras falam alguma coisa dos 10 anos antes do levante. Devo dizer que não se trata de uma imagem global, mas sim de pedaços de memória que ainda deve esperar ser reunida e apresentada. Contudo, estes pedaços ajudam muito a entender o que vem depois, ou seja, a segunda parte. Esta contém uma espécie de bitácola das ações públicas do zapatismo, desde o início da guerra na madrugada de primeiro de janeiro de 1994, até o nascimento dos Caracóis e a criação das Juntas de Bom Governo. Trata-se, na minha maneira de ver, do mais completo resgate do que tem sido o agir público do EZLN. Nesta viagem, o leitor poderá encontrar muitas coisas, mas uma salta à vista: o ser coerente de um movimento. Na terceira parte aparece uma entrevista comigo. Enviaram as perguntas por escrito e tive que responder diante de um pequeno gravador. Eu sempre pensei que o “Rewind” dos gravadores é “relembrar”, de tal forma que nesta parte trato de fazer um balanço dos 10 anos, além de refletir sobre outras coisas. Quando respondia, sozinho diante do gravador, lá fora chovia e uma das Juntas de Bom Governo dava seu “grito de independência”. Foi na madrugada de 16 de setembro de 2003. Creio que as três partes estão muito bem amarradas. Não só porque é a minha pluma a esboçá-las. Também porque contêm um olhar que ajuda a olhar, a olhar-nos. Tenho certeza de que, como Gloria, muitos e muitas, ao olhar-nos, verão a si mesmos. E também tenho certeza de que ela, e com ela muitos e muitas, se saberão melhores. E é isso de que se trata, de ser melhores. Isso foi na introdução, porque no prólogo do livro escrevi quanto segue: Há 10 anos, na madrugada de janeiro de 1994, nos levantamos em armas por democracia, liberdade e justiça para todos os mexicanos. Numa ação simultânea, tomamos 7 cabeceiras municipais do Estado de Chiapas, no sudetse mexicano, e declaramos guerra ao governo federal, seu exército e suas polícias. Desde então, o mundo nos conhece como Exército Zapatista de Libertação Nacional. Mas nós já nos chamávamos assim desde antes. Em 17 de novembro do ano de 1983, há 20 anos, foi fundado o EZLN, e como EZLN começamos a caminhar nas montanhas do sudeste mexicano, carregando uma pequena bandeira de fundo preto com uma estrela vermelha de cinco pontas e as letras “EZLN”, também em vermelho, debaixo da estrela. Ainda levo esta bandeira. Está cheia de remendos e maltratada, mas ainda tremula ao vento no Comando Geral do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Nós também temos remendos na alma, feridas que supomos cicatrizadas, mas que se abrem quando menos esperamos. Durante 10 anos nos preparamos para estes primeiros minutos do ano de 1994. Lá se vê janeiro de 2004. Logo, serão 10 anos de guerra. 10 anos de preparação e 10 anos de guerra, 20 anos. Mas não vou falar nem dos primeiros 10 anos, nem dos seguintes, nem dos 20 juntos. E tem mais, não vou falar de anos, de datas, de calendários. Vou falar de um homem, um soldado insurgente, um zapatista. Não vou falar muito. Não posso. Não ainda. Chamava-se Pedro e morreu combatendo. Tinha o grau de subcomandante e era, no momento em que caiu, chefe do Estado Maior do EZLN e meu segundo no comando. Não vou dizer porque morreu. Está morto, mesmo que eu não queria que estivesse morto. Mas, como todos os nossos mortos, Pedro caminha por aqui e, de vez em quando, aparece, fala, conta piadas, fica sério, pede mais café e acende o enésimo cigarro. Agora está aqui. É o dia 26 de outubro e é o seu aniversário. Digo-lhe “saúde companheiro”. Ele levanta sua xícara de café e diz “saúde Sub”. Não sei porque me coloquei o nome de “Marcos” se ninguém me chama assim, todos me dizem “Sub” ou seus equivalentes. Pedro me diz “Sub”. Falamos com Pedro. Eu conto pra ele e ele me conta. Recordamos. Rimos. Ficamos sérios. Às vezes o repreendo. Repreendo-o por ser indisciplinado, porque eu não lhe ordenei que morresse e ele morreu, não obedeceu. Então, o repreendo. Ele só abre mais os olhos e diz “de jeito nenhum”. Sim, de jeito nenhum. Então lhe mostro um mapa. Ele gosta de ver os mapas. Aponto pra ele o quanto temos crescido. Sorri. Josué se aproxima, cumprimenta e dá os parabéns “felicidades companheiro subcomandante insurgente Pedro”. Pedro ri e diz “Minha nossa, quando você acaba de dizer tudo isso já fiz aniversário outra vez.”. Pedro olha para Josué e olha para mim. Eu concordo em silêncio. Em seguida, já não estamos celebrando o aniversário. Nós três estamos subindo uma encosta. Durante um descanso Josué diz: “Já vai completar 10 anos do início da guerra”. Pedro não diz nada, só acende um cigarro. Josué acrescenta “E 20 desde que nasceu o EZLN. Temos que fazer um grande baile”. “20 e 10”, repito em voz baixa, e acrescento “e os que faltam”. Enquanto isso, já chegamos no topo da encosta. Josué tira a mochila. Eu acendo o cachimbo e com a mão aponto lá pra longe. Pedro olha para onde aponto, levanta e diz a si mesmo e a nós: “Sim, já se vê o horizonte...”. Pedro vai embora. Josué levanta de novo a sua mochila e me diz que temos que continuar. Sim, é assim: temos que continuar. O que é que estava lhes dizendo? Ah sim! Nós nascemos há 20 anos e há 10 anos nos levantamos em armas por democracia, liberdade e justiça. Somos conhecidos pelo nome de “Exército Zapatista de Libertação Nacional” e nossa alma, ainda que com remendos e cicatrizes, continua tremulando como esta velha bandeira que se vê lá em cima, essa com a estrela vermelha de cinco pontas sobre o fundo preto e as letras “EZLN”. Nós somos os zapatistas, os mais pequenos, os que cobrem o rosto para serem olhados, os mortos que morrem para viver. E tudo isso é porque faz 10 anos, em primeiro de janeiro, e faz 20 anos, em 17 de novembro, nas montanhas do sudeste mexicano. Aí termina o prólogo e começa o escrito de Glória Muñoz Ramírez, assim como hoje terminam as minhas palavras e começa a campanha “EZLN: 20 e 10, o fogo e a palavra” com a apresentação de um livro que às vezes é jarra-garrafa coberta de espelhos e cristais, às vezes é um tapete e que sempre é uma história que não se deve esquecer, porque a esquecendo, esquecemos a nós mesmos.

Agora sim é oficial: parabenizamos todas e todos os que, nestes 20 e 10, têm colocado o fogo e a palavra.

É tudo. Caso tenham se aborrecido, vão amanhã, 11 de novembro, à exposição de arte gráfica que será rifada na Casa de Cultura Jesús Reyes Heroles, e ao baile do dia 14 no salão Los Ángeles. Se ainda assim continuam aborrecidos, é que têm propensão para deputados, senadores ou pré-candidatos à presidência do México. Bom, já vou indo porque já se ouvem os primeiros acordes de “Cartas Marcadas” e, com certeza, vão acabar madrugando com o pastel e as sacolinhas de doces. Valeu. Saúde e que todos nos encontrem e se encontrem.

Das montanhas do Sudeste Mexicano e enchendo bexigas só para que não digam que já não sopro, Subcomandante Insurgente Marcos. México, novembro de 2003. 20 e 10.